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Quem somos

GUARANI RETÃ

Os Guarani seguem vivendo onde sempre têm vivido, apesar das inumeráveis pressões, ameaças e mortes. A existência e a realização do modo de ser das populações Guarani é anterior à organização dos Estados nacionais atuais.

O território dos Guarani – guarani retã – também é anterior à criação e à conformação dos atuais países e de suas fronteiras, de fato muito recentes. Esta pré-existência é reconhecida na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, a Constituição da República do Paraguai, de 1992, a Constituição da Nação Argentina, de1994, e a Constituição Nacional da Bolívia, de 2009. Dois exemplos:

O Artigo 62 da Constituição Nacional da República do Paraguai, diz, literalmente: “Esta Constituição reconhece a existência dos povos indígenas, definidos como grupos de culturas anteriores à formação e organização do Estado paraguaio” (tradução livre).

O Artigo 30 da Constituição boliviana, diz: “É nação e povo indígena originário campesino toda coletividade humana que comparta identidade cultural, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmovisão, cuja existência é anterior à invasão colonial espanhola” (tradução livre).

No mapa, as comunidades aparecem dispersas por um território muito extenso, cuja ocupação, historicamente, foi compartilhada com outros povos, em áreas que os Guarani chamam de tekohá, as quais equivalem ao “território e paisagem guarani”, caracterizado por ecossistemas de notável equilíbrio, com terras aptas para os cultivos agrícolas, base de sua alimentação. Os indígenas Guarani habitam, desde há mais de dois mil anos, estes vastos territórios, sem nunca terem provocado a exaustão de seus recursos.
Os Guarani são povos com alta mobilidade, mas isto não quer dizer que são nômades sem residência fixa; de fato, vivem em aldeias de diversos tamanhos e são bons agricultores. Contatados pelos invasores europeus desde 1505, os Guarani manifestavam uma grande unidade linguística e cultural. Com muita propriedade, lhes deram o nome genérico de Guarani, como haviam sido conhecidos pelos primeiros europeus que chegaram à costa do Brasil e do Rio da Prata.

Estenderam-se por esta ampla região da América do Sul, em sucessivas migrações que se prolongaram ao longo de milhares de anos. Atualmente, formam alguns grandes conjuntos ou grupos socioculturais, cada um com suas formas diferentes de falar o idioma Guarani.

As migrações geralmente se dão quando um grupo dissidente vai para outra terra, mas parte da população permanece no lugar de origem. No entanto, a unidade do modo de ser guarani não se desfez e as características específicas de cada lugar não impedem a comunicação e a relação entre comunidades de um amplo território, ainda que este seja cortado pelas fronteiras atuais de diferentes Estados nacionais.

As migrações se deram por diferentes motivos: um dos mais fortes foi, talvez, a busca da “terra-sem-mal”. São males, para os Guarani, uma terra esgotada para a agricultura, uma paisagem desértica, um campo sem árvores ou, na atualidade, a produção de gado e as monoculturas da soja, pinus ou cana de açúcar, que ameaçam suas vidas e seus territórios.

É também “um mal” as muitas doenças e mortes por fome e epidemias; os desentendimentos, desordem e conflitos sociais e políticos entre os membros e famílias da comunidade. Mas, um dos maiores males que os Guarani têm tido que suportar é a invasão e destruição de sua terra, a ameaça contra seu modo de ser, a expulsão, a discriminação e o desprezo que vieram com a chegada de “outros”, dos colonos e dos fazendeiros, sojicultores, usineiros e petroleiros.

A violência também é ocasionada pelo avanço de várias frentes de expansão das sociedades nacionais, desde os pequenos agricultores até os latifundiários que se regem por sistemas econômicos e culturais contrários ao dos Guarani.

Uma estimativa confiável da população Guarani nos quatro países, no ano de 2016, se apresenta conforme os gráficos a seguir:

Esta tabela provém de muitas fontes: governamentais e não governamentais, verificadas também por organizações locais. Não constam neste Mapa outros povos da família linguística tupi-guarani, que seguiram outros caminhos e têm, agora, outra consciência de seu próprio ser, e deixaram de chamar-se e sentir-se, especificamente, Guarani.
Assim como outros povos na América Latina, os Guarani encontram-se num franco processo de crescimento populacional: altos níveis de fecundidade – maior número médio de filhos por mulher –, aliados com a queda dos níveis de mortalidade que estão sendo mantidos nos últimos 20 anos, pelo menos.

TEKOHÁ GUASÚ/TENTA GUASU: terra e território

Os Guarani costumam afirmar: “Nós não vivemos para comprar terra, nós vivemos apenas para usá-la de acordo com nossos costumes”. Para os Guarani a terra significa, em primeiro lugar, espaço de vida, um espaço onde realizam sua maneira de ser. As palavras yvy e tekohá podem ser traduzidas por terra e território. Obviamente, a terra tem sua importância como meio de produção, no sentido de poderem manter-se como grupo, para assegurar a existência de todos os familiares, mas não para acumular riquezas.

O sentido da palavra tekohá é “um lugar de costume e de modo de vida”; é produto da cultura e também produz cultura. Tekó significa “modo de ser, modo de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, hábito, condição, costume […]”, como se entendia já antes da chegada dos espanhóis. O tekohá é o lugar onde se dão as condições para ser guarani. A terra, concebida como tekohá, é também um espaço econômico, mas, em primeiro lugar, um lugar cultural e sócio-político. O tekohá significa e produz, ao mesmo tempo, relações econômicas, relações sociais e organização político-religiosa essenciais para a vida guarani: sem tekohá não há teko, sem território não há vida guarani. Entre os Guarani Ocidentais, para tekohá se diz tenta, que também significa pátria e aldeia.

As excelentes terras e florestas dos Guarani têm suscitado a cobiça de outras populações e, mais recentemente, de grandes empresários da agricultura mecanizada, que utilizam os próprios Guarani como mão de obra barata ou os expulsam quando não os necessitam. O território guarani, de fato, encontra-se, agora, em grande parte destruído ou ameaçado pelos cultivos industriais de soja, cana de açúcar e também pelo reflorestamento com espécies de árvores exóticas, como o eucalipto e o pinus. Da mesma forma, a introdução de pastos exóticos da África e Ásia, como colonião e braquiária, têm sido um desastre para a agricultura guarani, invadindo as roças e facilitando a propagação do fogo.

O colonialismo europeu, tanto português como espanhol, explorou a mão de obra guarani, causando morte e destruição cultural. O neocolonialismo atual é ainda mais agressivo, ao expulsar aos indígenas de suas terras e fragmentar seu território.

A “nação guarani”, como a viram os antigos conquistadores e como a chamaram os colonos europeus até o século XIX pelo menos, não desapareceu, pelo contrário, está bem vigente. O guarani retã não significa só uma população, um povo ou uma cidade, mas, sim, uma pátria, um país, uma nação, ou uma terra. Essa identidade fundamenta-se no guarani reko, um modo de ser e de proceder com características próprias. Todo o território Guarani, o solo em que pisam, é um tekohá, o lugar físico, a terra e o espaço geográfico onde estas populações indígenas são o que são, onde existem.

ÑANDE REKÓ: identidade e mudanças

A base da vida social guarani encontra-se na família extensa e representa uma cadeia permanente de comunicação e resolução de desafios na vida comunitária.
A Aty – assembleia e a ñemboaty – ou “grande fumada”, entre os Guarani Ocidentais – são instituições políticas de grande importância, mecanismos de tomada de decisões, espaços de deliberação e planejamento de atividades, festas religiosas e econômicas, podendo reunir um número variável de comunidades. Os chefes de família reúnem-se para informar-se dos problemas, discuti-los e propor alternativas. Nas grandes reuniões regionais, a aty funciona como uma instituição recuperada e consolidada, que permite às comunidades falar de seus problemas, discutir e consensuar em três aspectos principais de sua vida: o organizativo, o administrativo e o político. Cada sessão de uma aty é aberta e encerrada com uma oração – ñembo’e – da qual participam todos os presentes.
Migrações e conflitos, através de uma longa história milenar, têm produzido diferenças segundo os vários lugares habitados, sua peculiar relação com outros povos indígenas, e sua maneira de integrar-se ao meio ambiente, usando-o sem destruí-lo. A economia da reciprocidade que adotaram tem configurado aspectos fundamentais de sua política e cultura. Os Guarani guardam tradições de tempos muito antigos, delas conservaram a memória e foram atualizando-as em seus mitos e ritos.

O BEM VIVER

A produção entre os Guarani busca assegurar a boa e equitativa distribuição de produtos da agricultura e de outros bens na família nuclear e entre as famílias extensas, dando lugar também a convites e festas. A prática de intercâmbio de bens – quanto mais abundante, melhor – marca a qualidade do bem viver e configura redes de relações entre as comunidades, com base no parentesco, alianças políticas e participação em festas e rituais. É uma economia solidária que se baseia na reciprocidade e intercâmbio de dons. Não tem incentivo nem espaço para a acumulação.
A festa e a distribuição da chícha – kagut – é outro ato de reciprocidade do qual ninguém deve se apropriar de modo exclusivo. Assegurada a subsistência familiar, sempre há algo para dar e retribuir. Este é o sentido da festa, do areté, o “tempo verdadeiro por excelência”, o dia de festa. No verão, quando é abundante a colheita do milho, da mandioca (yuca) e de outros produtos, como a batata, feijões e abóboras, são frequentes as festas. Na festa guarani consome-se excedentes produzidos para este fim e são renovadas as relações de amizade e de trabalho em comum. Sem festas, a produção baixa sensivelmente. A palavra guarani yopói -jopói-, comum a todos os povos guarani, significa mão aberta, dar de comer, compartilhar um com o outro. Esta é a lei fundamental da economia, a lei do “dar e receber”, na casa e entre as casas entre si.

COSMOVISÃO

O ciclo de vida de um Guarani, em todos os seus momentos importantes – concepção, nascimento, recepção de nome, iniciação, paternidade e maternidade, doenças, chamado espiritual e mortes – define-se a si mesma em função de uma “palavra-alma” única e singular. O homem, ao nascer, orienta-se através de sua “palavra-alma”, que o coloca em pé e o levanta até sua estatura plenamente humana.
O modo de ver o mundo, de entendê-lo, de interpretá-lo e de descrevê-lo, costuma ser chamado de cosmovisão. Ritos e crenças são a expressão simbólica desse mundo. Não é só religião, mas é, também, filosofia, poesia, teologia e fundamento de sua identidade.
Os rituais guarani constam, geralmente, de canto e dança; são orações dançadas, dança que é oração – ñembo’e. Por isso são chamados ñembo’e jeroky: reza dança. São ritos religiosos que se relacionam com o divino. O ritual é concebido como um caminho e uma busca espiritual.
Os Guarani têm, como Deus supremo, um Pai, um Grande Pai, um Avô grande primeiro e último. Os Filhos deste pai são outras divindades e espíritos, com nomes que se diferenciam segundo os diversos grupos. Muitos destes ‘deuses’ são espíritos cuidadores da selva ou dos animais da floresta. Outros cuidam da atividade agrícola.
No rito do batismo, por exemplo – na realidade, a imposição de nome para uma criança -, é o líder religioso quem deve encontrar, mediante a inspiração recebida de os de Cima e as orações que reza, o nome da pessoa, segundo o lugar espiritual de onde provém. Este nome será parte integrante da pessoa. O Guarani não se chama assim ou assado, ele é o seu nome.
A cosmologia e a experiência religiosa dos Guarani Ocidentais é algo diferente. Tũpaete -Tumpa Ete, eles costumam dizer – é o deus supremo, o dono da vida de todos os seres vivos, é o pai, aquele que sabe tudo; é um deus que cuida de todos os seres vivos, é o grande deus.
Nas aldeias não costuma faltar as “casas de reza”, mesmo que de forma diferente em cada um dos povos guarani. Nestas casas e nos pátios abertos em frente são realizadas as festas do milho, onde se canta e se dança durante longas horas.
A religião dos Guarani, em suas diversas modalidades, é bastante conhecida e praticada pelas comunidades. Mais vulneráveis são aquelas que têm sido despejadas de seus tekohá e se encontram dispersas em pequenos grupos, em lugares inóspitos, nas periferias das cidades ou mendigando nas ruas.
A educação tradicional dos Guarani é “para escutar as palavras que cada um recebe de os de Cima”, geralmente através do sonho. Os sistemas nacionais de educação, em vez de usar a sabedoria da educação indígena, que tem conseguido manter a identidade destes povos, por ignorância e por discriminação, têm se tornado um perigo para os povos indígenas.

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Apresentação

No Mapa Guarani Continental apresentamos uma introdução ao território guarani de hoje, que abrange parte dos países da Argentina, da Bolívia, do Brasil e do Paraguai. São mais de 280.000 pessoas, unidas por uma língua e cultura comuns, distribuídas em 1.416 comunidades, aldeias, bairros urbanos ou núcleos familiares, desde o litoral do Atlântico até a região pré andina. Os Guarani constituem um dos povos indígenas de maior presença territorial no continente americano. Os mapas em anexo mostram onde vivem, como se denominam esses lugares, quantos são, e quais são os ecossistemas naturais em que habitam.

Esperamos contribuir para a compreensão da extraordinária capacidade demonstrada pelos vários povos guarani para seguir sendo Guarani, depois de cinco séculos de intensa pressão colonial. O Mapa e o Caderno devem ser instrumentos de apoio em suas demandas por territórios e políticas públicas que respeitem sua autonomia como povos que vivem em diferentes países, unidos por vínculos de língua, cosmovisão, história e cultura.

De maneira criativa, os Guarani atualizam e desenvolvem novos modelos de assentamentos em áreas de seu território ancestral, o que lhes permite seguir reproduzindo suas relações sociais, mesmo que em condições, às vezes, extremamente adversas, como no Brasil. Na Bolívia, no entanto, conquistaram o reconhecimento legal da maior parte de seus territórios tradicionais. Os conhecimentos sobre o meio ambiente e sobre outras populações tão diversas com as quais convivem, permitem aos Guarani ampliar sua capacidade de compreender o mundo em sua transformação e encontrar novas perspectivas e desenvolver práticas de atuação de acordo com as necessidades atuais de suas comunidades.

Não são somente testemunhas de tempos passados, mas, sim, protagonistas do presente e construtores do futuro. Seus caminhos de liberdade nos convidam a entrar num movimento que não é exclusivo deles, mas é também de todos aqueles que não se conformam com o modelo econômico predador que ameaça a terra e destrói a convivência entre todos os humanos e outros tipos de seres com os quais dividimos a existência na terra. Com eles nos sentimos mais humanos, que é o significado da palavra ava na sua língua: homem, pessoa.

Aumentar o conhecimento destas situações e dos desafios encontrados para a integração de perspectivas e ações em comum tem sido o objetivo principal deste projeto, realizado mediante a construção de uma rede de colaboradores de vários países e com a participação de organizações indígenas e não-indígenas dos quatro países mencionados no estudo.