- abril 21, 2017abril 25, 2017
- por emgc
Ao longo dos séculos de colonização, diversas denominações foram atribuídas aos coletivos guarani presentes em um extenso território ao qual se sobrepuseram as fronteiras dos Estados nacionais.
A sua concentração e dispersão espacial, de acordo com a nomenclatura vigente, está representada no Mapa Guarani Continental. No contexto brasileiro, em razão das múltiplas interações e similaridades históricas, optamos por empregar o nome geral Guarani, sem especificar os etnômios Kaiowá, Nhandeva (Ava Guarani, Tupi Guarani, Xiripá) e Mbyá, referidos na literatura atual.
A população Guarani em terras indígenas, reservas, áreas dominiais, acampamentos e situações urbanas, entre os anos de 2012 e 2015, foi estimada, segundo dados oficiais do Estado e da equipe do Mapa Guarani Continental, em 85.255 pessoas, espalhadas por onze estados nas cinco regiões brasileiras.
Considerando dificuldades no recenseamento guarani, atribuídas, entre outras causas, à mobilidade em suas numerosas aldeias, calcula-se que este contingente está assim distribuído: 64.455 na região Centro-Oeste, estado de Mato Grosso do Sul (MS); 300 nos estados de Mato Grosso (MT), Tocantins (TO), Pará (PA), Maranhão (MA); 20.500 nas regiões Sul e Sudeste, estados do Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC), Paraná (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Espírito Santo (ES).
Em MS e PR, a situação dos Guarani sofreu profundas alterações logo após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), cujos efeitos se estenderam às aldeias das demais regiões que abrigavam famílias indígenas em busca de refúgio.
O final da guerra consolidou a ocupação continuada no interior do país por sucessivas frentes de exploração econômica, como a extração da erva-mate nativa, projetos agropecuários e de colonização, cujos ritmos passaram a marcar a vida dos Guarani. Na década de 1970 introduziu-se o cultivo mecanizado de soja, milho e trigo e, nos anos 1980, o plantio de cana de açúcar.
Como efeito cumulativo do avanço das frentes de expansão, as terras de ocupação tradicional guarani foram gradativamente expropriadas, as matas derrubadas e os indígenas relegados à condição de mão-de-obra barata, similar à escravidão. O desmatamento comprometeu a biodiversidade, substituindo as matas, capoeiras e campos pelas monoculturas.
Até a década de 1980, no litoral do Sul e Sudeste, os Guarani eram equivocadamente considerados nômades, aculturados ou estrangeiros e, à revelia da legislação vigente, não lhes eram garantidos direitos sobre as terras que ocupavam.
Durante a década de 1980, projetos econômicos se intensificaram com a construção de complexos turísticos e rodovias litorâneas. Rapidamente, a especulação imobiliária gerou desordenada e progressiva ocupação humana. Além de turistas, trabalhadores migraram de várias regiões do país, atraídos por empregos informais na construção civil e nas obras de urbanização, que resultaram na degradação e diminuição da Mata Atlântica e destruição de caminhos e aldeias cujas áreas passaram a ser alvo de interesses financeiros.
Em pequenas áreas nas regiões Norte e Nordeste e no Mato Grosso (MT), núcleos familiares guarani vivem em aldeias próprias ou, como minoria, em terras de outros povos indígenas. No município de Nova Jacundá (PA), desde 1997 o Governo Federal homologou uma área dominial de 424 hectares para os Guarani. Todos descendem de um mesmo grande grupo que, após a Guerra do Paraguai, partiu rumo ao norte do Brasil, visando chegar ao “mar de Belém”, e se separaram durante seus trajetos.
A exploração econômica no Mato Grosso do Sul e Paraná e o processo de expulsão dos Guarani de suas terras tradicionais – de 1880 a 1980
A instalação da Companhia Matte Laranjeira em 1882, no sul do MS e oeste do PR, foi responsável pela disseminação de várias doenças e diminuição da população indígena.
Paralelamente, beneficiando-se da infraestrutura que a Companhia trouxe para a região, instalaram-se as primeiras fazendas de gado. Neste início de nova colonização, o processo de expulsão não afetava toda as aldeias guarani na mesma intensidade, uma vez que parte das aldeias se localizam em lugares de difícil acesso, em matas fechadas e altiplanos.
Na virada do século XIX para o século XX, inicia-se a extração de madeira, levada aos mercados do Prata via rio Paraná, e na metade do século XX, a extração da madeira é direcionada para MS.
Em Mato Grosso do Sul, a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), em l943, promoveu a instalação de milhares de colonos, com titulação de terras e implantação de empreendimentos agropecuários sobre os territórios indígenas.
No oeste do PR, o processo de expulsão dos Guarani foi agravado com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1980. Memória da extrema violência a que foram submetidos, ainda segue viva naqueles que tiveram numerosos tekohá, áreas de uso e locais sagrados inundados e que persistiram em permanecer na região.
Tanto as frentes colonizadoras como a instalação de Itaipu impuseram a fuga para locais de difícil acesso em fragmentos de matas, no Brasil, Paraguai e Argentina, ou a transferência para Reservas Indígenas no MS, PR e SC. Posteriormente, várias famílias voltaram à região dos municípios de Foz de Iguaçu, Guaíra e Terra Roxa, no oeste do Paraná.
A partir da segunda metade do século XX ocorreram movimentos de fuga para aldeias no litoral Sul e Sudeste e a criação de novas aldeias, onde os Guarani pretendiam viver com liberdade, escapando dos maus tratos e do regime de trabalho e moradia imposto nas Reservas Indígenas, alheios ao seu modo de ser, tekó.
O reconhecimento dos direitos territoriais dos Guarani no período do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
Entre os anos de 1915 e 1928, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) demarcou, em Mato Grosso do Sul, oito Reservas com superfície total de 18.124 hectares, com o objetivo de confinar os núcleos guarani dispersos na região.
A intenção era liberar terras para a colonização e submeter os indígenas à lógica econômica de mercado. Somente a partir do final da década de 1980, apoiando-se nos preceitos da Constituição Federal (CF) de 1988 e em setores da sociedade civil, comunidades guarani recuperam a posse de 11 terras de antigas aldeias que, juntas, somam um total de 22.450 hectares.
Entretanto, ações judiciais contestando os direitos dos Guarani impedem a finalização desses procedimentos demarcatórios. A partir dos anos 1990, novas reivindicações de demarcações foram encaminhadas ao Governo, mas os procedimentos não seguiram seu curso, agravando-se os conflitos fundiários. Em 2008, a FUNAI constituiu 6 Grupos Técnicos para realização de estudos de Identificação e Delimitação de Terras Guarani no MS, porém não foram finalizados.
A maior parte da população indígena, cerca de 80%, vive concentrada nas oito Reservas demarcadas pelo SPI ou em acampamentos às margens das rodovias e em áreas tituladas em nome de particulares. A violência contra os indígenas e os conflitos fundiários com o setor ruralista prolongam-se indefinidamente e assumem um caráter dramático.
No Sul e Sudeste, os Guarani utilizam o conceito de yvyrupá, que, cosmologicamente, fundamenta o sentido de mundo em toda a sua extensão terrestre, para designar politicamente o território sem fronteiras onde distribuem seus tekoá. Nos estados de RS, SC, PR, SP, RJ e ES, os Guarani ocupam 153 Terras Indígenas (136 exclusivamente Guarani e 17 compartilhadas com outros povos).
Registrou-se também 105 locais de antigas aldeias, desocupados em decorrência de pressões fundiárias, esbulhos, descaracterização ambiental, etc. Ao todo, 258 áreas foram contabilizadas a partir dos anos 1980, conforme o Atlas das Terras Guarani no Sul e Sudeste do Brasil, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI – 2015).
Destas, em todos os seis estados federativos, apenas 17 áreas tiveram o procedimento de demarcação plenamente concluído antes dos anos 2000, somando um total aproximado de 25.000 hectares; cerca de 60 estão com os procedimentos em curso ou paralisados; e 70 sem providência administrativa. Alguns avanços ocorreram a partir de 2008, com o início de vários estudos de identificação e atualização de limites que se encontram em diversas etapas, sem conclusão. Em Guaíra e Terra Roxa, PR, os procedimentos para demarcação, iniciados em 2013, estão paralisados. Nota-se que, mesmo regularizando todas as terras reivindicadas pelos Guarani, estas não superariam 1% do território desses estados.
Há ainda ações judiciais movidas por órgãos governamentais em SC, PR e SP, devido à incidência de Unidades de Conservação em Terras Indígenas situadas na Mata Atlântica do litoral, visando à expulsão da população guarani das áreas de sobreposição.
Apesar da exiguidade das áreas pleiteadas pelos Guarani para o conjunto de seu povo, diversos entraves têm impedido sua regularização. Os processos judiciais contra a demarcação de suas terras obstaculizam os encaminhamentos administrativos. Avanços conquistados estão ameaçados com ações judiciais visando anular procedimentos que se encontram nas etapas finais, no RS, SC, SP e MS.
Em vários casos, o próprio judiciário emite ações de despejos, cumpridas por forças policias. A defesa jurídica das comunidades tem se empenhado em manter as comunidades nas áreas enquanto os processos seguem seu curso.
Entretanto, em muitas situações ocorrem remoções forçadas dos indígenas por fazendeiros que formam milícias armadas ou contratam empresas de segurança, revelando não somente a articulação entre os fazendeiros, mas um modus operandi na escalada dos ataques às comunidades indígenas.
O confinamento guarani: expropriação territorial, etnocídio silencioso e continuado
O processo de expropriação e confinamento de contingentes populacionais muito superior aos padrões historicamente vivenciados pelos Guarani, em espaços extremamente exíguos, impôs profundas limitações à sua economia, inviabilizando a itinerância e causando o esgotamento de recursos necessários para a vida nas aldeias.
O confinamento trouxe, ainda, o desafio de adequar a organização social à sobreposição de espaços familiares. Nas Reservas, segundo a percepção dos Guarani, restringem-se drasticamente as possibilidades de reprodução dos modos de ser guarani e são impostos padrões culturais não indígenas. Este processo é a raiz dos principais problemas sociais que assolam as comunidades.
Em razão das dificuldades vivenciadas nas Reservas em Mato Grosso do Sul, vários grupos familiares vão se estabelecendo nas periferias de cidades, em situação precária, em busca de trabalho assalariado e, em sua maioria, não alcançados pelas leis trabalhistas. As condições a que os Guarani têm sido submetidos caracteriza um processo de etnocídio silencioso e contínuo. Ainda hoje, são inúmeras as iniciativas políticas impositivas que buscam “integrá-los” à sociedade envolvente, como estratégia, não só de espoliação de seus territórios, mas da extinção efetiva de seus modos de vida.
Segundo o senso comum da população local não indígena, o “problema indígena” deixará de existir quando os Guarani deixarem de ser Guarani, seja pela eliminação física, seja pelo abandono de seu modo próprio de ser. Os relatórios de violência contra os povos indígenas no Brasil, elaborados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), expressam a gravidade da situação. Dentre os anos de 2003 e 2015 ocorreram no Brasil, pelo menos, 891 assassinatos de pessoas indígenas; destes, 426 (47%) foram no MS. Significa dizer que houve um assassinato a cada 11 dias neste Estado. Entre estes assassinatos, encontram-se, pelo menos, 16 casos de lideranças indígenas, as quais, segundo inquéritos e denúncias do Ministério Público Federal (MPF) foram assassinadas a mando de fazendeiros da região.
Conforme investigações da Polícia Federal e do MPF, estes crimes estão vinculados diretamente à luta pela terra, intensificada nos últimos anos devido à crise humanitária que vivem as comunidades. Segundo estes órgãos, nos últimos 5 anos se conformou, em Mato Grosso do Sul, uma milícia privada armada para atacar comunidades indígenas. Recentemente, o MPF denunciou 12 pessoas ligadas ao agronegócio, por formação de milícia armada.
Durante o período de 2000 a 2015, ocorreram, entre os Guarani no Mato Grosso do Sul, pelo menos 752 casos de suicídio, dos quais 70% eram jovens entre 15 e 25 anos. Em outras palavras, houve um caso de suicídio por semana, nos últimos 16 anos. Por fim, diagnóstico nutricional e alimentar realizado pela sessão Brasil da Foodfirst Information & Action Network (Fian), em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontam que algumas comunidades Guarani no MS registram 42% de desnutrição crônica, situação que, além de matar, impede que as crianças desenvolvam todas as suas capacidades motoras e de crescimento saudável, desde a sua gestação, uma vez que as mães também apresentam quadro desnutricional grave.
Para o assessor especial para a prevenção de Genocídio, do Secretário Geral das Nações Unidas, Adama Dieng, Genocídio é “quando se é morto, não pelo que se fez, mas sim por quem se é” e “tudo começa com a desumanização de um grupo específico”.
Esta Secretaria da ONU tem trabalhado com novas afirmações e instrumentos de risco que permitem que a situação vivida por comunidades guarani receba o enquadramento jurídico político de genocídio, no Direito internacional.
É o caso da “Framework of Analysis for Atrocity Crimes”, marco elaborado pelo escritório de prevenção das Nações Unidas, que analisa preventivamente fatores de riscos para Crimes de Atrocidades, Genocídio ou Contra a Humanidade. Seguindo esta metodologia, uma pesquisa preliminar da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) aponta que a situação dos Guarani no MS se enquadra em todos os 14 fatores de risco (8 comuns e 6 específicos).
A dimensão e a gravidade do confinamento extremo imposto aos Guarani é visível, especialmente nas reservas de Dourados, Amambai e Caarapó (MS), que somam 9.498 hectares e abrigam cerca de 26 mil pessoas; em Guaíra e Terra Roxa, no PR, onde cerca de 3.500 pessoas vivem em pequenas áreas sem regularização e disputadas pelos ruralistas; e na TI Jaraguá, em SP, com apenas 1,7 hectares demarcados, com uma população de mil habitantes.
Observe no mapa ao lado a distribuição populacional dos povos Guarani nas fronteiras Brasil, Paraguai e Argentina. As 8 reservas Guarani Kaiowá em MS, aglomeram cerca de 40 mil pessoas, destoando drasticamente da demografia guarani no restante da região.
Procedimento para atualização dos limites da Terra Indígena (TI) Jaraguá, SP, teve início em 2008, comprovando uma área de ocupação tradicional de 532 hectares, cerceados aos Guarani por diversas ações judiciais.
A luta incansável pela terra – articulações e mobilizações nacionais e internacionais
O processo de redemocratização da sociedade brasileira, com a CF de 1988, abriu novas possibilidades para o reconhecimento dos direitos indígenas e o protagonismo destes povos. Articuladas em torno de sua grande assembleia, a Aty Guasu, ainda nos anos 1980, várias comunidades em MS retomaram parte de suas terras tradicionais.
Da mesma forma, nos últimos anos, os Guarani praticamente triplicaram a posse efetiva de suas terras, através de ações de retomadas (de terra). As reações de setores do agronegócio geraram conflitos fundiários, causando grande número de mortos e feridos, como o caso do Massacre de Caarapó, ocorrido em junho 2016, amplamente noticiado na imprensa. Contrapondo-se a um contexto extremamente difícil, os Guarani passaram a renovar a construção de redes de alianças entre lideranças, comunidades e o movimento indígena nacional e internacional, bem como ampliaram suas conexões com organizações de apoio aos direitos humanos e movimentos sociais.
Com forte articulação, os Guarani no Sul e Sudeste formalizaram, em 2006, a Comissão Guarani Yvyrupá. O nome desta organização política define sua esfera de ação diante dos problemas e conflitos territoriais nas diversas regiões, assim como a atuação conjunta, no plano das políticas públicas, com movimentos indígenas nacionais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e regionais, como a Nhemongueta, constituída por um Conselho de lideranças guarani em Santa Catarina. As lideranças dessas organizações não abdicaram da orientação dos xe ramõi e xe jarýi – avós, sábios (literalmente, “meu avô”, “minha avó”) – que participam de encontros e reuniões em que são encaminhadas reivindicações de direitos sócio-territoriais.
As conquistas, no reconhecimento e garantia dos territórios indígenas, devem-se às mobilizações estratégicas e articulações dos Guarani, na defesa intransigente de seus direitos constitucionais e em tratados e convenções internacionais. Nos últimos anos, os Guarani têm garantido maior visibilidade da grave situação a qual estão submetidos, acionando diversos mecanismos com o objetivo de forçar o Estado brasileiro a cumprir com suas obrigações legais.
É o caso das recomendações da relatora especial para povos indígenas da ONU, Victória Tauli-Corpuz, após visita ao Brasil; também as preocupações manifestadas pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, em relação aos assassinatos e à impunidade que se arrasta por décadas no MS; as manifestações e pedidos de esclarecimentos por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil; e, recentemente, a emissão de uma Resolução de Urgência do Parlamento Europeu, face à escalada da violência contra os Guarani no MS.