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Na Argentina

Na Argentina

A política de reconhecimento dos povos guarani na Argentina baseia-se na Reforma Constitucional, do ano 1994, que admite e reconhece que os povos indígenas são pré-existentes étnica e culturalmente à Nação Argentina (Artigo 75, Inc.17), substituindo, assim, a anterior referência constitucional que promovia “o trato pacífico com os índios e sua conversão ao catolicismo”.

Outro passo fundamental foi a aprovação do Convênio 169 sobre Povos Indígenas, da Organização Internacional do Trabalho, vigente na Argentina desde o ano 2001. No entanto, observamos que as políticas de reconhecimento não têm dado lugar, ainda, a políticas de garantia efetiva de direitos.

No ano de 2006 foi promulgada a Lei Nacional 26.160 de “Emergência Territorial Indígena”, que regulariza o levantamento dos territórios de uso das Comunidades e suspende os despejos. No entanto, até a presente data, na província de Missiones, do total de 120 comunidades, só foi finalizado o levantamento em 45 delas (37,5%).

A atual população guarani, que habita nas províncias de Salta e Jujuy, soma uns 45.000 habitantes, descendentes de migrantes da região pré-andina da Bolívia oriental vizinha. As migrações foram originadas pelos conflitos bélicos com o Estado boliviano e pela ocupação de suas terras entregues aos fazendeiros que se estabeleceram em seu território na segunda metade do século 19. Esta guerra de resistência culminou com a derrota dos Guarani na batalha de Kuruyuky, em 1892.

Quarenta anos mais tarde, os Guarani, que haviam conseguido fugir para os campos próximos ao Pilcomayo, foram surpreendidos pela revolta entre paraguaios e bolivianos na Guerra do Chaco, que, na realidade, era uma Guerra pelo petróleo provocada por empresas estrangeiras (1931-1935). Muitos deles tiveram que buscar refúgio nas terras do norte argentino, principalmente nas províncias de Salta e Jujuy e empregar-se na safra nos engenhos açucareiros e também nas fazendas de plantação de bananas e cítricos e nas serrarias.

Assentaram-se em torno das fontes de trabalho, constituindo bairros e comunidades, como na periferia das cidades de Tartagal, Embarcación e Orán, com características similares às das suas comunidades de origem, organizadas a partir da família extensa.

Atualmente, encontram-se organizadas em torno da “Asamblea del Pueblo Guaraní Argentina” (APG Argentina), criada por influência da APG boliviana e, recentemente, reconhecida pelo Estado argentino. A APG tem sua estrutura própria, sendo sua primeira autoridade uma mulher – kuñakampinta -; no caso de ser homem é Mburubicha ou Capitão. Tradicionalmente são eleitos por unanimidade.

As formas de posse da terra dos Guarani na região são variadas. A maioria possui somente as terras que ocupa, mas carecem de territórios aptos e suficientes que permitam sua reprodução social e cultural. No entanto, há algumas situações mais favoráveis, como o caso da comunidade de São José de Yacuy, onde contam com um território mais amplo (4.000 hectares) que lhes permite praticar seus cultivos tradicionais de subsistência e destinar outra parte dos produtos ao comércio. Apesar da grande diversidade nas formas de posse da terra, são registradas altas taxas de desmatamento, pelos processos de expansão da fronteira agropecuária e pelos conflitos com empresas petrolíferas.

Com relação à educação escolar, o Estado argentino reconhece o direito a uma Educação Intercultural Bilíngue (EIB) para os povos indígenas, estabelecendo, no ano 2006, a educação bilíngue como modalidade do sistema educativo. Em Salta existe, desde os anos 1980, o cargo de Auxiliar Bilíngue e, em Jujuy, recentemente foi incorporada a figura de pessoa “idônea” para o ensino em língua guarani. Somente funciona para o nível primário e está concentrado na zona rural.

Na Província de Missiones, Argentina, a população guarani supera os 10.000 habitantes, distribuídos em 120 Tekoá ou Comunidades, sendo a grande maioria composta por Mbyá-Guarani e com relações próximas com os Mbyá do Paraguai e do Brasil. Do total da população guarani em Missiones, 78,8% tem menos de 30 anos de idade.

Das 120 comunidades, somente 14 superam os 150 habitantes (e somente uma tem mais de 1.000 pessoas). Do conjunto de comunidades identificadas, 75 destas têm reconhecidas as terras em nome de pessoa jurídica, que é condição fundamental para ter acesso à titularidade dos territórios – das que ainda carecem – e a outros benefícios outorgados pelo Estado.
Uma parte considerável da população não-indígena discrimina, explora e desconhece os direitos dos Guarani. Na Constituição Provincial de Missiones ainda não foram incorporados os Direitos Indígenas, como consta na Constituição Nacional e na maioria das outras Constituições provinciais na Argentina.

A resistência tem como ponto de partida as organizações próprias da sociedade guarani. A de maior relevância e que tem tido continuidade é a Aty Ñeichyrõ – Assembleia Tradicional dos Mburuvichá (Caciques) -, mediante a qual buscam afirmar-se diante do Estado Provincial e Nacional, como também frente às pessoas vizinhas e às empresas. Estes espaços caracterizam-se pela força da própria espiritualidade, na qual se concede um lugar de destaque à palavra sábia dos anciãos e anciãs.

Para além das fronteiras políticas nacionais, recorrem ao Concelho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA), com uma ativa participação de seus representantes.
A luta pelo reconhecimento dos Direitos Indígenas e de Consulta que mantêm ordinariamente, é constante e incansável, tornando-os, assim, visíveis frente a uma sociedade que pretende ignorá-los. As reivindicações pela recuperação de territórios se faz sentir de forma permanente, devido à grave situação ambiental e social a que têm sido relegados, convertendo-os, em alguns casos, em comunidades periféricas das cidades, em que alguns jovens e crianças se veem obrigados a apelar à mendicância.

O não cumprimento oficial em relação a seus direitos territoriais e sociais provoca diversos problemas difíceis de resolver. Sua postura decidida em defesa do ambiente deve-se à convicção de que a falta de floresta traz consigo carências alimentares, dificulta as práticas religiosas, impossibilita a sustentabilidade e provoca enfraquecimento cultural; o abandono da medicina tradicional traz graves consequências para sua saúde.

A ruptura do equilíbrio ecológico em que viviam produz-lhes uma maior dependência do sistema de saúde estatal e mudança nos hábitos alimentares. Somam-se a isto, as políticas estatais de caráter assistencialista que não fortalecem a autodeterminação destas populações.

Cada vez mais, crianças e jovens indígenas ingressam no sistema educativo oficial, buscando encontrar soluções para as dificuldades que sofrem. Mas, até agora, a escola mais colabora com a fragilização do sistema em vez de favorecê-lo, ao não dar-lhes espaços de participação na elaboração dos Planos de Ensino que efetivamente contemplem metodologias e conteúdos de acordo com a visão guarani-mbyá, que é a sua.

Os adultos e suas organizações próprias veem com preocupação a nova situação dos estudantes, que são animados a seguir sua formação, mas, por outro lado, os distancia de seu centro vital e de sua vida comunitária.

Quanto às manifestações religiosas, apesar das repetidas tentativas de diferentes igrejas para que se somem a elas, o Povo Mbyá resiste ao avanço de outras formas de fé que não lhes são próprias, mantendo, assim, suas práticas espirituais e religiosas tradicionais – a base e fundamento de sua vida cotidiana.

Na Bolívia

OS Guarani da Bolívia foram, geralmente, conhecidos como Chiriguanos, mas hoje preferem a autodenominação de Ava Guarani e Isoseño. No entanto, não pode ser ignorado que existem outros povos Guarani diferentes em muitos aspectos; são os Gwarayú (Guarayos), Sirionó (Mbia e Yuki), Tapieté e Guarasug’we.

Perante tal diversidade, foi notável o esforço por “normalizar a língua guarani”, o que permitiu o desenvolvimento de materiais para o ensino da língua nos processos de Educação Intercultural Bilíngue na década de 1990, consolidada no ano de 2011, com o documento chamado Ñeesimbika yambaekuatia vaerã (“Para escrever a língua Guarani”).

Vindo do leste sul-americano, antes da invasão europeia, os Guarani ocuparam as melhores terras desde o sopé dos Andes até as planícies; terras especialmente adequadas para o cultivo de milho, mandioca, vários tipos de feijão, abóbora, batata-doce e amendoim.

Os povos Ava Guarani e Isoseño incluem, atualmente, mais de 220 comunidades em 25 áreas, ou Tentaguasu, com um total de 65.000 habitantes. Um dos valores fundamentais do teko, ou modo de ser guarani, é ser autônomo, viver livre, ijamba’e; ou seja, sem dono. O tenta seria o tekohá dos Guarani orientais, que também significa pátria. Para entender a cosmovisão Guarani é necessário considerar três elementos: o ñande reko (nosso modo de ser), o arakuaa (a sabedoria) e o ñe’ẽ (a palavra). De acordo com uma expressão que é típica entre os Guarani atuais, sua terra é um território, é um tekohá ou um tenta.

A história do povo Guarani na Bolívia está fortemente ligada à terra e ao território e responde a uma dinâmica de processos de ocupação, avassalamento e expropriação, que teve sua maior crise após a histórica batalha de Kuruyuki. A derrota militar dos Guarani foi no ano de 1892, pelo Exército boliviano, seguido do lento avanço da pecuária extensiva, fato que obrigou os Guarani a abandonar seus espaços territoriais e se refugiar em lugares afastados, em terras marginais e bastante inóspitas.

Durante a Guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai (1931-1935), foram novamente atingidos por ambos os exércitos e algumas comunidades se refugiaram na vizinha Argentina e outras no Paraguai, onde ficaram conhecidos como Guarayos e agora são chamados de Guarani Ocidentais. A Reforma Agrária de 1953, um acontecimento jurídico e político transcendental na Bolívia, serviu para legalizar o espólio e a usurpação das terras e do território tradicional do povo Guarani.

Apesar desta situação, os povos Guarani, como outros povos indígenas na Bolívia, nunca renunciaram ao direito de posse sobre o seu território, bem como à sua autonomia. Quase um século depois da batalha de Kuruyuki, foi estabelecida, em 1987, a Assembleia do Povo Guarani (APG), uma organização nacional que possibilita expressar suas vozes, reivindicar seus direitos socioculturais e territoriais e trabalhar pela sua autodeterminação, propondo-se, entre outras demandas, à reconstituição da Nação Guarani.

O estatus jurídico das comunidades e capitanias Guarani é a “organização comunitária” e, sob essa figura legal, o Estado outorga a pessoa jurídica e a titulação de terras como Terras Comunitárias de Origem. Muitas das capitanias obtiveram suas terras mediante a compra, através de gestões por parte da Igreja Católica e da cooperação internacional e, em outros casos, através de processos de expropriação amparados nas leis e procedimentos realizados por meio do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA).
A cultura organizacional guarani na Bolívia se localiza na comunidade, a partir da família, como um grupo de parentesco extenso. O Ñemboaty é o espaço formal das deliberações e decisões. Esta instituição foi recuperada e consolidada com a fundação da APG, em 1987. Esse Ñemboati é a instituição que permite às comunidades (tenta) deliberar, através de consenso, em, basicamente, três aspectos: organizacional, administrativo e político. Os Guarani Isoseños têm, no grande fumar, de caráter eminentemente religioso, uma instituição similar, mas também conhecem outros mecanismos de tomada de decisão. É a instância na qual é escolhido o Mburuvicha e os responsáveis por cada uma das secretarias da estrutura organizativa, em qualquer nível, desde o comunal até o nacional.

Uma vez reconhecida a democracia comunitária pela Constituição de 2009, o povo guarani consolidou este espaço. A Lei do INRA reconhece o direito dos povos indígenas e originários a obter a titulação das Terras Comunitárias de Origem (TCO) e de Territórios Indígenas Originários Camponeses (TIOC). Também, através desta lei, procedeu-se a titulação de mais de 60% das terras comunais guarani.

Em vários casos, a titulação das TCO foi um marco importante para as comunidades Guarani assumirem a responsabilidade de começar um processo de desenvolvimento autônomo. Um dos obstáculos encontrados com frequência é o potencial limitado das terras para desenvolver atividades produtivas.

No âmbito da educação escolar, os avanços para o povo guarani têm sido significativos, inicialmente, com o fortalecimento da Escola Normal de Formação de Professores Pluri-étnica de Oriente e Chaco (ENFP-POC), elevada ao statust de universidade. Através dela os professores se formam com o nível de licenciatura, o que garante a igualdade de condições dos Guarani dentro da sociedade nacional, com um esquema de revalorização dos seus saberes ancestrais e próprios de sua cultura.

Atualmente, cada comunidade conta com uma escola, com professores bilíngues em Guarani e Castelhano. Em várias comunidades existem núcleos educativos e cada núcleo conta com uma Unidade Educativa de nível secundário.

Há uma Universidade Nacional Indígena Boliviana Guarani Apiaguayqui Tumpa (UNIBOL Guarani), que oferece formação profissional em diferentes disciplinas, adequadas ao habitat, às necessidades e à realidade local dos povos indígenas aos quais se orienta. Ela oferece um serviço de formação integral (técnico, cultural e ecológico) para jovens indígenas bolsistas indicados pelas comunidades e capitanias. Também está incluída a medicina tradicional, bem como a soma de conhecimentos utilizados para o diagnóstico, prevenção e tratamento de distúrbios físicos, mentais ou sociais, com base na experiência e na observação, transmitidas de uma geração à outra.

O povo Guarasug’we tem uma população de 400 habitantes, assentados na comunidade Porvenir, localizada nos limites entre os departamentos de Santa Cruz e Beni, na Amazônia boliviana. Eles viviam da caça, da pesca, da coleta e do cultivo de mandioca e milho, mas, atualmente, estão em um processo de reorientação sob pressão da população regional.
Os indígenas Gwarayú ou Guarayos contam com uma população de 15.000 habitantes e com uma cultura fortemente agrícola de características guarani. Existe, na atualidade, uma forte organização com status jurídico reconhecido, chamada COPNAG (Central de Organização dos Povos Nativos Guarayos). Os Guarayos têm uma longa história de vinculação com o Estado, desde o surgimento da Missão Franciscana até o período posterior à Reforma Agrária, que impulsionou sua submissão aos “brancos” ou caraí, através do estabelecimento de fazendas. Nas últimas décadas do século 20, as antigas missões tornaram-se as atuais comunidades, quando foi alcançada a consolidação territorial nos TCO. Adotaram o conselho indígena, de acordo com a herança do sistema das Missões ou redutos antigos, como sua organização originária.

Durante a georeferência e identificação recente de comunidades Sirionó (Mbia) foi identificada uma população de 1.340 habitantes, que têm um território demarcado de 52.206 hectares, a TCO Sirionó SANTCO. A organização social dos Sirionó tem como referência principal a família nuclear, totalmente funcional às atividades produtivas e operativas para os deslocamentos de caça, ainda que permaneça em pleno vigor a família extensa. As principais atividades produtivas são a caça, a pesca e a coleta, sendo a caça a que fornece mais prestígio.
Os Yuqui, parentes próximos dos Sirionó, são 1.040 habitantes na sua Terra-Território do TCO Mbya Recuaté Yuqui Chipiriri – Chapare, que tem 115.000 hectares. Eles estão em uma condição de extrema vulnerabilidade. A precária atividade econômica dos Yuqui se concentra na caça, na pesca, na coleta e no artesanato.

A população Tapiete do Chaco boliviano é de 205 habitantes. O território Tapiete, atualmente TOC do Povo Tapiete de Samaihuate, está localizado na margem esquerda do rio Pilcomayo, localizado no departamento de Tarija, com 24.840 hectares. É importante salientar que o Povo Tapiete foi o primeiro a consolidar uma TCO indígena no país. Os Tapieté de Samayhuate atualmente falam uma língua muito próxima à língua dos Guarani da Bolívia e têm usos e costumes compartilhados com eles. A Assembleia do Povo Indígena Tapiete (APIT) é a instancia superior que toma decisões e elege autoridades. É instalada para resolver quaisquer situações ou conflitos, para tomar decisões que dizem respeito à população e, a cada dois anos, para a eleição de autoridades superiores, com a presença de toda a comunidade que, através do voto democrático, escolhe os seus representantes.

No Brasil

Ao longo dos séculos de colonização, diversas denominações foram atribuídas aos coletivos guarani presentes em um extenso território ao qual se sobrepuseram as fronteiras dos Estados nacionais.

A sua concentração e dispersão espacial, de acordo com a nomenclatura vigente, está representada no Mapa Guarani Continental. No contexto brasileiro, em razão das múltiplas interações e similaridades históricas, optamos por empregar o nome geral Guarani, sem especificar os etnômios Kaiowá, Nhandeva (Ava Guarani, Tupi Guarani, Xiripá) e Mbyá, referidos na literatura atual.

A população Guarani em terras indígenas, reservas, áreas dominiais, acampamentos e situações urbanas, entre os anos de 2012 e 2015, foi estimada, segundo dados oficiais do Estado e da equipe do Mapa Guarani Continental, em 85.255 pessoas, espalhadas por onze estados nas cinco regiões brasileiras.

Considerando dificuldades no recenseamento guarani, atribuídas, entre outras causas, à mobilidade em suas numerosas aldeias, calcula-se que este contingente está assim distribuído: 64.455 na região Centro-Oeste, estado de Mato Grosso do Sul (MS); 300 nos estados de Mato Grosso (MT), Tocantins (TO), Pará (PA), Maranhão (MA); 20.500 nas regiões Sul e Sudeste, estados do Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC), Paraná (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Espírito Santo (ES).
Em MS e PR, a situação dos Guarani sofreu profundas alterações logo após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), cujos efeitos se estenderam às aldeias das demais regiões que abrigavam famílias indígenas em busca de refúgio.

O final da guerra consolidou a ocupação continuada no interior do país por sucessivas frentes de exploração econômica, como a extração da erva-mate nativa, projetos agropecuários e de colonização, cujos ritmos passaram a marcar a vida dos Guarani. Na década de 1970 introduziu-se o cultivo mecanizado de soja, milho e trigo e, nos anos 1980, o plantio de cana de açúcar.

Como efeito cumulativo do avanço das frentes de expansão, as terras de ocupação tradicional guarani foram gradativamente expropriadas, as matas derrubadas e os indígenas relegados à condição de mão-de-obra barata, similar à escravidão. O desmatamento comprometeu a biodiversidade, substituindo as matas, capoeiras e campos pelas monoculturas.
Até a década de 1980, no litoral do Sul e Sudeste, os Guarani eram equivocadamente considerados nômades, aculturados ou estrangeiros e, à revelia da legislação vigente, não lhes eram garantidos direitos sobre as terras que ocupavam.

Durante a década de 1980, projetos econômicos se intensificaram com a construção de complexos turísticos e rodovias litorâneas. Rapidamente, a especulação imobiliária gerou desordenada e progressiva ocupação humana. Além de turistas, trabalhadores migraram de várias regiões do país, atraídos por empregos informais na construção civil e nas obras de urbanização, que resultaram na degradação e diminuição da Mata Atlântica e destruição de caminhos e aldeias cujas áreas passaram a ser alvo de interesses financeiros.
Em pequenas áreas nas regiões Norte e Nordeste e no Mato Grosso (MT), núcleos familiares guarani vivem em aldeias próprias ou, como minoria, em terras de outros povos indígenas. No município de Nova Jacundá (PA), desde 1997 o Governo Federal homologou uma área dominial de 424 hectares para os Guarani. Todos descendem de um mesmo grande grupo que, após a Guerra do Paraguai, partiu rumo ao norte do Brasil, visando chegar ao “mar de Belém”, e se separaram durante seus trajetos.

A exploração econômica no Mato Grosso do Sul e Paraná e o processo de expulsão dos Guarani de suas terras tradicionais – de 1880 a 1980

A instalação da Companhia Matte Laranjeira em 1882, no sul do MS e oeste do PR, foi responsável pela disseminação de várias doenças e diminuição da população indígena.
Paralelamente, beneficiando-se da infraestrutura que a Companhia trouxe para a região, instalaram-se as primeiras fazendas de gado. Neste início de nova colonização, o processo de expulsão não afetava toda as aldeias guarani na mesma intensidade, uma vez que parte das aldeias se localizam em lugares de difícil acesso, em matas fechadas e altiplanos.

Na virada do século XIX para o século XX, inicia-se a extração de madeira, levada aos mercados do Prata via rio Paraná, e na metade do século XX, a extração da madeira é direcionada para MS.

Em Mato Grosso do Sul, a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), em l943, promoveu a instalação de milhares de colonos, com titulação de terras e implantação de empreendimentos agropecuários sobre os territórios indígenas.

No oeste do PR, o processo de expulsão dos Guarani foi agravado com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1980. Memória da extrema violência a que foram submetidos, ainda segue viva naqueles que tiveram numerosos tekohá, áreas de uso e locais sagrados inundados e que persistiram em permanecer na região.
Tanto as frentes colonizadoras como a instalação de Itaipu impuseram a fuga para locais de difícil acesso em fragmentos de matas, no Brasil, Paraguai e Argentina, ou a transferência para Reservas Indígenas no MS, PR e SC. Posteriormente, várias famílias voltaram à região dos municípios de Foz de Iguaçu, Guaíra e Terra Roxa, no oeste do Paraná.

A partir da segunda metade do século XX ocorreram movimentos de fuga para aldeias no litoral Sul e Sudeste e a criação de novas aldeias, onde os Guarani pretendiam viver com liberdade, escapando dos maus tratos e do regime de trabalho e moradia imposto nas Reservas Indígenas, alheios ao seu modo de ser, tekó.
O reconhecimento dos direitos territoriais dos Guarani no período do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
Entre os anos de 1915 e 1928, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) demarcou, em Mato Grosso do Sul, oito Reservas com superfície total de 18.124 hectares, com o objetivo de confinar os núcleos guarani dispersos na região.

A intenção era liberar terras para a colonização e submeter os indígenas à lógica econômica de mercado. Somente a partir do final da década de 1980, apoiando-se nos preceitos da Constituição Federal (CF) de 1988 e em setores da sociedade civil, comunidades guarani recuperam a posse de 11 terras de antigas aldeias que, juntas, somam um total de 22.450 hectares.

Entretanto, ações judiciais contestando os direitos dos Guarani impedem a finalização desses procedimentos demarcatórios. A partir dos anos 1990, novas reivindicações de demarcações foram encaminhadas ao Governo, mas os procedimentos não seguiram seu curso, agravando-se os conflitos fundiários. Em 2008, a FUNAI constituiu 6 Grupos Técnicos para realização de estudos de Identificação e Delimitação de Terras Guarani no MS, porém não foram finalizados.

A maior parte da população indígena, cerca de 80%, vive concentrada nas oito Reservas demarcadas pelo SPI ou em acampamentos às margens das rodovias e em áreas tituladas em nome de particulares. A violência contra os indígenas e os conflitos fundiários com o setor ruralista prolongam-se indefinidamente e assumem um caráter dramático.
No Sul e Sudeste, os Guarani utilizam o conceito de yvyrupá, que, cosmologicamente, fundamenta o sentido de mundo em toda a sua extensão terrestre, para designar politicamente o território sem fronteiras onde distribuem seus tekoá. Nos estados de RS, SC, PR, SP, RJ e ES, os Guarani ocupam 153 Terras Indígenas (136 exclusivamente Guarani e 17 compartilhadas com outros povos).

Registrou-se também 105 locais de antigas aldeias, desocupados em decorrência de pressões fundiárias, esbulhos, descaracterização ambiental, etc. Ao todo, 258 áreas foram contabilizadas a partir dos anos 1980, conforme o Atlas das Terras Guarani no Sul e Sudeste do Brasil, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI – 2015).
Destas, em todos os seis estados federativos, apenas 17 áreas tiveram o procedimento de demarcação plenamente concluído antes dos anos 2000, somando um total aproximado de 25.000 hectares; cerca de 60 estão com os procedimentos em curso ou paralisados; e 70 sem providência administrativa. Alguns avanços ocorreram a partir de 2008, com o início de vários estudos de identificação e atualização de limites que se encontram em diversas etapas, sem conclusão. Em Guaíra e Terra Roxa, PR, os procedimentos para demarcação, iniciados em 2013, estão paralisados. Nota-se que, mesmo regularizando todas as terras reivindicadas pelos Guarani, estas não superariam 1% do território desses estados.
Há ainda ações judiciais movidas por órgãos governamentais em SC, PR e SP, devido à incidência de Unidades de Conservação em Terras Indígenas situadas na Mata Atlântica do litoral, visando à expulsão da população guarani das áreas de sobreposição.

Apesar da exiguidade das áreas pleiteadas pelos Guarani para o conjunto de seu povo, diversos entraves têm impedido sua regularização. Os processos judiciais contra a demarcação de suas terras obstaculizam os encaminhamentos administrativos. Avanços conquistados estão ameaçados com ações judiciais visando anular procedimentos que se encontram nas etapas finais, no RS, SC, SP e MS.

Em vários casos, o próprio judiciário emite ações de despejos, cumpridas por forças policias. A defesa jurídica das comunidades tem se empenhado em manter as comunidades nas áreas enquanto os processos seguem seu curso.

Entretanto, em muitas situações ocorrem remoções forçadas dos indígenas por fazendeiros que formam milícias armadas ou contratam empresas de segurança, revelando não somente a articulação entre os fazendeiros, mas um modus operandi na escalada dos ataques às comunidades indígenas.

O confinamento guarani: expropriação territorial, etnocídio silencioso e continuado

O processo de expropriação e confinamento de contingentes populacionais muito superior aos padrões historicamente vivenciados pelos Guarani, em espaços extremamente exíguos, impôs profundas limitações à sua economia, inviabilizando a itinerância e causando o esgotamento de recursos necessários para a vida nas aldeias.

O confinamento trouxe, ainda, o desafio de adequar a organização social à sobreposição de espaços familiares. Nas Reservas, segundo a percepção dos Guarani, restringem-se drasticamente as possibilidades de reprodução dos modos de ser guarani e são impostos padrões culturais não indígenas. Este processo é a raiz dos principais problemas sociais que assolam as comunidades.

Em razão das dificuldades vivenciadas nas Reservas em Mato Grosso do Sul, vários grupos familiares vão se estabelecendo nas periferias de cidades, em situação precária, em busca de trabalho assalariado e, em sua maioria, não alcançados pelas leis trabalhistas. As condições a que os Guarani têm sido submetidos caracteriza um processo de etnocídio silencioso e contínuo. Ainda hoje, são inúmeras as iniciativas políticas impositivas que buscam “integrá-los” à sociedade envolvente, como estratégia, não só de espoliação de seus territórios, mas da extinção efetiva de seus modos de vida.

Segundo o senso comum da população local não indígena, o “problema indígena” deixará de existir quando os Guarani deixarem de ser Guarani, seja pela eliminação física, seja pelo abandono de seu modo próprio de ser. Os relatórios de violência contra os povos indígenas no Brasil, elaborados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), expressam a gravidade da situação. Dentre os anos de 2003 e 2015 ocorreram no Brasil, pelo menos, 891 assassinatos de pessoas indígenas; destes, 426 (47%) foram no MS. Significa dizer que houve um assassinato a cada 11 dias neste Estado. Entre estes assassinatos, encontram-se, pelo menos, 16 casos de lideranças indígenas, as quais, segundo inquéritos e denúncias do Ministério Público Federal (MPF) foram assassinadas a mando de fazendeiros da região.

Conforme investigações da Polícia Federal e do MPF, estes crimes estão vinculados diretamente à luta pela terra, intensificada nos últimos anos devido à crise humanitária que vivem as comunidades. Segundo estes órgãos, nos últimos 5 anos se conformou, em Mato Grosso do Sul, uma milícia privada armada para atacar comunidades indígenas. Recentemente, o MPF denunciou 12 pessoas ligadas ao agronegócio, por formação de milícia armada.

Durante o período de 2000 a 2015, ocorreram, entre os Guarani no Mato Grosso do Sul, pelo menos 752 casos de suicídio, dos quais 70% eram jovens entre 15 e 25 anos. Em outras palavras, houve um caso de suicídio por semana, nos últimos 16 anos. Por fim, diagnóstico nutricional e alimentar realizado pela sessão Brasil da Foodfirst Information & Action Network (Fian), em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontam que algumas comunidades Guarani no MS registram 42% de desnutrição crônica, situação que, além de matar, impede que as crianças desenvolvam todas as suas capacidades motoras e de crescimento saudável, desde a sua gestação, uma vez que as mães também apresentam quadro desnutricional grave.

Para o assessor especial para a prevenção de Genocídio, do Secretário Geral das Nações Unidas, Adama Dieng, Genocídio é “quando se é morto, não pelo que se fez, mas sim por quem se é” e “tudo começa com a desumanização de um grupo específico”.

Esta Secretaria da ONU tem trabalhado com novas afirmações e instrumentos de risco que permitem que a situação vivida por comunidades guarani receba o enquadramento jurídico político de genocídio, no Direito internacional.

É o caso da “Framework of Analysis for Atrocity Crimes”, marco elaborado pelo escritório de prevenção das Nações Unidas, que analisa preventivamente fatores de riscos para Crimes de Atrocidades, Genocídio ou Contra a Humanidade. Seguindo esta metodologia, uma pesquisa preliminar da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) aponta que a situação dos Guarani no MS se enquadra em todos os 14 fatores de risco (8 comuns e 6 específicos).

A dimensão e a gravidade do confinamento extremo imposto aos Guarani é visível, especialmente nas reservas de Dourados, Amambai e Caarapó (MS), que somam 9.498 hectares e abrigam cerca de 26 mil pessoas; em Guaíra e Terra Roxa, no PR, onde cerca de 3.500 pessoas vivem em pequenas áreas sem regularização e disputadas pelos ruralistas; e na TI Jaraguá, em SP, com apenas 1,7 hectares demarcados, com uma população de mil habitantes.

Observe no mapa ao lado a distribuição populacional dos povos Guarani nas fronteiras Brasil, Paraguai e Argentina. As 8 reservas Guarani Kaiowá em MS, aglomeram cerca de 40 mil pessoas, destoando drasticamente da demografia guarani no restante da região.

Procedimento para atualização dos limites da Terra Indígena (TI) Jaraguá, SP, teve início em 2008, comprovando uma área de ocupação tradicional de 532 hectares, cerceados aos Guarani por diversas ações judiciais.

A luta incansável pela terra – articulações e mobilizações nacionais e internacionais

O processo de redemocratização da sociedade brasileira, com a CF de 1988, abriu novas possibilidades para o reconhecimento dos direitos indígenas e o protagonismo destes povos. Articuladas em torno de sua grande assembleia, a Aty Guasu, ainda nos anos 1980, várias comunidades em MS retomaram parte de suas terras tradicionais.

Da mesma forma, nos últimos anos, os Guarani praticamente triplicaram a posse efetiva de suas terras, através de ações de retomadas (de terra). As reações de setores do agronegócio geraram conflitos fundiários, causando grande número de mortos e feridos, como o caso do Massacre de Caarapó, ocorrido em junho 2016, amplamente noticiado na imprensa. Contrapondo-se a um contexto extremamente difícil, os Guarani passaram a renovar a construção de redes de alianças entre lideranças, comunidades e o movimento indígena nacional e internacional, bem como ampliaram suas conexões com organizações de apoio aos direitos humanos e movimentos sociais.

Com forte articulação, os Guarani no Sul e Sudeste formalizaram, em 2006, a Comissão Guarani Yvyrupá. O nome desta organização política define sua esfera de ação diante dos problemas e conflitos territoriais nas diversas regiões, assim como a atuação conjunta, no plano das políticas públicas, com movimentos indígenas nacionais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e regionais, como a Nhemongueta, constituída por um Conselho de lideranças guarani em Santa Catarina. As lideranças dessas organizações não abdicaram da orientação dos xe ramõi e xe jarýi – avós, sábios (literalmente, “meu avô”, “minha avó”) – que participam de encontros e reuniões em que são encaminhadas reivindicações de direitos sócio-territoriais.

As conquistas, no reconhecimento e garantia dos territórios indígenas, devem-se às mobilizações estratégicas e articulações dos Guarani, na defesa intransigente de seus direitos constitucionais e em tratados e convenções internacionais. Nos últimos anos, os Guarani têm garantido maior visibilidade da grave situação a qual estão submetidos, acionando diversos mecanismos com o objetivo de forçar o Estado brasileiro a cumprir com suas obrigações legais.

É o caso das recomendações da relatora especial para povos indígenas da ONU, Victória Tauli-Corpuz, após visita ao Brasil; também as preocupações manifestadas pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU, em relação aos assassinatos e à impunidade que se arrasta por décadas no MS; as manifestações e pedidos de esclarecimentos por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil; e, recentemente, a emissão de uma Resolução de Urgência do Parlamento Europeu, face à escalada da violência contra os Guarani no MS.

No Paraguai

OParaguai tem, atualmente, uma população de 62.000 pessoas Guarani. O número de aldeias ou comunidades na região oriental do Paraguai é muito alto: 124 pertencem ao grupo Ava-Guarani; 170 aos Mbyá, e 62 aos Pãi-Tavyterã. Essa fragmentação e atomização provavelmente respondem à destruição de muitos tekohá que hoje são apenas enclaves dentro do que foi o seu território. Os Aché foram reduzidos a 6 comunidades. A maior concentração está entre os Guarani Ocidentais do Chaco, com apenas 6 grandes unidades, na forma de bairros de pequenas cidades, e os Guarani Ñandéva, com 4 comunidades semelhantes.

Para todos os Guarani, a terra não é propriamente uma superfície de terra que pode ser medida, fragmentada e vendida, mas um espaço onde se vive o modo de ser guarani, o tekó. No Paraguai, os Guarani, especialmente após o Tratado de Itaipú e a construção da hidrelétrica binacional, tiveram os seus tekohá profundamente transformados. Todo o território guarani tem sido afetado por mudanças que parecem irreversíveis, devido às tentativas e pressões de forçar os Guarani a abandonar seu sistema de vida cultural, religioso e econômico.

As características destas transformações e substituições têm sido causadas, principalmente, pelos seguintes fatores:
A entrada de um novo contingente populacional brasileiro, os chamados brasiguaios, que ocupam grande parte dos territórios tradicionais guarani, e de outros proprietários de terras que se dedicam ao agronegócio, com o cultivo de soja mecanizada e fazendas de gado, que atingem dezenas de milhares de hectares. De fato, estes cultivos obrigam ao desmatamento completo da área, acompanhado da expulsão de seus habitantes tradicionais. Assim, o tekohá dos Guarani foi destruído definitivamente.

A expulsão e o abandono dos tekohá, pela destruição de suas florestas, pelos agrotóxicos que envenenam as águas e o ar e pelo não reconhecimento de suas terras por parte do Estado são os principais ataques e a maior injustiça que os povos guarani sofrem na região leste do país, atualmente.

A permissão, o incentivo e a proteção dos contratos de arrendamento de terras indígenas por parte do Estado, com a conivência de alguns caciques, marcam a atual política contra os Guarani. Nenhum aspecto legal ou autoridade política pode justificar a entrega dessas terras aos arrendatários, que deixam as comunidades em situação de extrema pobreza e expostas ao despejo. É uma prática inconstitucional que se tornou habitual e, em alguns casos, se apresenta hipocritamente como “ajuda”.

A extensão do contrato de arrendamento das terras apresenta características alarmantes. As comunidades Guarani que alugam suas terras, total ou parcialmente, são 148, das quais, 95 comunidades as alugam para colonos paraguaios, 70 para brasileiros, 11 para menonitas e 10 para alemães.

O povo Avá-Guarani é, talvez, o mais afetado, por uma situação em que se combinam o assédio e a pressão dos colonos do agronegócio, com a inatividade de lideranças comunitárias. Seguem os Mbyá, os Aché e, em menor medida, os Pai-Tavyterã. Dos 34.320 hectares que os Guarani possuem nos departamentos de Canindeyú, Alto Paraná, Caaguazú e Caazapá, 16.479 são alugados.

A legislação a respeito dos territórios indígenas e a demarcação de terras tiveram um grande avanço ao ser promulgada a Lei 904/81, que dá origem ao INDI que, no art. 1, define a sua origem e seu objetivo: menciona explicitamente a defesa do patrimônio e, implicitamente, refere-se aos aspectos tangíveis e intangíveis de seus espaços comunitários. Em seu art. 17 menciona: A concessão de terras fiscais para as comunidades indígenas será realizada de forma gratuita e indivisível. A fração não poderá ser embargada, alienada, arrendada a terceiros, prescrita nem comprometida para garantir qualquer crédito, no todo ou em parte.

A Constituição Nacional do Paraguai, de 1992, foi elaborada em um momento de grande euforia política, quando acabava a ditadura do general Alfredo Stroessner e o país esperava uma autêntica transição democrática. Embora os povos indígenas não tivessem representantes como membros constituintes, houve um sólido grupo de intelectuais, indígenas e juristas que souberam construir um bom texto sobre direitos indígenas, como foi definido no Capítulo V:

Artigo 62 – Dos povos indígenas e grupos étnicos
Esta Constituição reconhece a existência dos povos indígenas, definidos como grupos de cultura anteriores à formação e organização do Estado paraguaio.
Artigo 64 – Da propriedade comunitária. Os povos indígenas têm o direito à propriedade comunitária da terra, em extensão e qualidade suficientes para a conservação e desenvolvimento dos seus modos particulares de vida. O Estado fornecerá gratuitamente estas terras, as quais serão não embargáveis, indivisíveis, intransferíveis, imprescritíveis, não suscetíveis de garantir obrigações contratuais nem para locação; igualmente estarão isentas de imposto. Proíbe-se a remoção ou transferência do seu habitat sem o consentimento expresso dos mesmos.

A clara vontade política atual contra os povos guarani e o desamparo jurídico em que se encontram os seus tekohá, terras e territórios, são o maior risco que ameaça todos os Guarani do Paraguai. O poder executivo, aliado com o legislativo e o judiciário, está disposto a oferecer alguns benefícios para os Guarani – casas, água corrente, escolas -, exceto a defesa e o reconhecimento de suas terras e territórios, muito menos defender seu modo de ser, o seu tekó.

A isso junta-se o tratamento racista e discriminatório contra a população originária, privada de seus direitos humanos fundamentais. Além da expulsão de seus territórios, os Guarani são ameaçados e criminalizados quando exigem seus direitos reconhecidos pela Constituição do Paraguai de 1992 e pelos vários documentos dos organismos internacionais, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos povos indígenas (10-12-2007), que o Estado paraguaio subscreveu. No Paraguai não é apenas a falta de justiça, mas a declarada e manifesta injustiça contra os indígenas, que também vai contra o país.

A estrutura fundamental da família extensa, vivida de várias maneiras pelos diferentes grupos, ainda é uma das bases mais sólidas para manter o tekó guarani. A aty ou assembleia, como expressão política comunitária, regional e nacional, ainda é um dos suportes mais importantes para a persistência e resistência das comunidades guarani.
A aty é uma forma de política guarani muito forte e ordinária, especialmente entre os Pai-Tavyterã. A assembleia, no entanto, em algumas comunidades ou regiões, perdeu muito de sua força devido aos interesses criados por grupos e até mesmo famílias extensas, que se atribuem privilégios privados, em detrimento da comunidade. Aqui, novamente, o arrendamento de terras tem facilitado a desigualdade na distribuição equitativa dos recursos e bens.

A economia, que repousava em uma forma de trabalho comunitário e distribuição equitativa dos bens, foi profundamente transformada. A produção interna diminuiu. A dependência de salários externos, que beneficiam os professores nas escolas para indígenas, bem como os agentes de saúde, criou um desequilíbrio significativo na vida da comunidade, onde se insinua a distinção entre Guarani ricos e Guarani pobres.

Não desapareceu, no entanto, a festa – arete – e, nas famílias mais tradicionais ainda se mantém o dom – jopói, ‘mãos abertas uns para os outros’ -, que atinge a todos por igual. No regime de transformações que o Estado pretende impor, apesar das distorções que se fazem sentir com muita força, permanece, no entanto, em muitas comunidades, a prática comum da dança ritual e a palavra dos líderes religiosos no jeroky ñembo’e.

Contra o tekó guarani no Paraguai, a generalização de uma espécie de escola “nacional”, não deixa de ser um instrumento chave e nefasto para a desintegração do tekó, que, mesmo com professores indígenas, representa um grave perigo para a educação dos mais jovens, não só pela sua falta de efetividade no ensino do conhecimento necessário e adequado à atual situação colonial mas, por outro lado, porque traz consigo a propaganda implícita de outro modo de ser.

No entanto, através de maior formação de alguns professores, mesmo dentro do sistema escolar nacional, e com a melhor preparação de algumas lideranças, aparece uma consciência mais crítica sobre sua situação atual e a maneira de enfrentá-la. Por enquanto, ainda não tem sido possível um modelo de escola indígena para reforçar, e não substituir, a educação tradicional, cujo sucesso é fazer de um Guarani um bom Guarani.

A religião, com suas crenças e rituais, é mantida e praticada por grandes setores das comunidades guarani. Aqui serão considerados apenas alguns traços específicos de sua vivência e prática no Paraguai. Os rituais comuns e específicos, de grande valor simbólico e educativo são o jeroky e o ñembo’e. Os locais designados para esses rituais são claramente visíveis nas aldeias e comunidades guarani na Argentina e no Brasil, mas, especialmente no Paraguai, ainda se encontra o mba’e marangatu – lugar do sagrado -, nas grandes casas dos Pai-Tavyterã; o yvyra ña’ẽ, o cocho para a chícha dos Ava-Guarani; e a opy – casa ritual dos Mbya – raramente aberta aos não indígenas.

Entre os grandes rituais do avatikyry, a festa do milho novo é um ato significativo da força social, econômica e religiosa de uma comunidade ou de um conjunto delas. Devemos destacar que são os Pai-Tavyterã, no Paraguai, junto com os Simba, na Bolívia, que, entre todos os Guarani, ainda mantêm o ritual do lábio perfurado, como um sinal de identidade tradicional.

Para os Guarani no Paraguai, a defesa do seu modo de ser e a persistência em seu tekó ainda são a melhor garantia do seu futuro.
Os indígenas Guarani Ocidentais no Paraguai, que durante séculos foram chamados Chiriguanos, haviam migrado da região oriental do Paraguai, através do Chaco, inclusive antes da chegada dos espanhóis, e continuaram a migrar nos primeiros tempos da colônia, especialmente entre os anos 1530 a 1550. Estabelecidos no Chaco boliviano, impuseram o seu domínio sobre os povos Chané, que adotaram a língua Guarani.

Seguiram anos de acomodação com os colonos espanhóis e missionários, mas sem deixar de reivindicar seus direitos territoriais e sua liberdade. Guerras e conflitos foram frequentes; perderam muito da sua autonomia e vastos territórios passaram para mãos de grandes pecuaristas latifundiários.

Durante a Guerra do Chaco (1932-1938), algumas parcialidades deste povo apoiaram o exército paraguaio. Com a vitória do Paraguai e a definição da nova fronteira com a Bolívia, algumas centenas desses Guarani ‘bolivianos’ se encontraram em território paraguaio; o governo prometeu títulos de propriedade das terras e uma vaca leiteira.
De acordo com o desejo e pedido dos Guarani, a Congregação dos Oblatos de Maria Imaculada fundou as missões de Guachalla e de Santa Teresita, localizadas na cidade de Mariscal Estigarribia.

No Paraguai, são 4.605 Guarani Ocidentais, todos eles vivendo no departamento de Boquerón no Chaco, além de alguns na região leste. Do ponto de vista sociocultural, eles seguem, em geral, as normas e práticas dos Guarani que estão na Bolívia.
Também no Paraguai, o arete guasu ou carnaval, é uma comemoração de tradição forte e constante. A língua Guarani tende, porém, a adotar as particularidades e usos do Guarani paraguaio. A escolarização nacional alcança entre eles as mais altas taxas, em comparação com outros Guarani. O pertencimento à Igreja Católica é também uma característica distintiva.

Os Guarani-Ñandéva do Chaco são o mesmo povo que os Tapieté da Bolívia e Argentina e reúnem mais de 1.500 pessoas. Habitam, principalmente, em quatro comunidades, que têm suas terras legalmente reconhecidas.